segunda-feira, outubro 29, 2007

A arte de desenhar

Quando eu era criança eu desenhava estórias de príncipes e princesas, pais e filhos, fazendas e casas, enfim, tudo o que povoava a minha imaginação. Desenhava com qualquer coisa que tinha nas mãos, e isso deixava minha mãe louquinha da vida comigo. Era o meu modo de fazer o mundo. Crianças são boas em mudar o mundo.

Daí virei adolescente, e não queria mais mudar o mundo, queria que o mundo mudasse por mim. E como todos os adolescentes pensam que são donos do universo, foi um tanto frustrante saber que nada ia mudar pelo meu simples desejo. Adolescentes sofrem com isso, e justamente por isso são péssimos em manter as ferramentas simples para fazer algo realmente extraordinário.

E então finalmente virei gente, cresci, arranjei empregos, trabalhos, responsabilidades, números, currículo, contas bancárias, aluguel, o maldito PIS, CPMF, INSS, SUS, e todas as siglas para o suicídio mental de todas as coisas que realmente importam. É minha gente, é difícil ser criança no mundo de gente grande.

Mas um desses dias quentes e abafados, quase como os dias de morte lenta e suculenta, eu decidi voltar a desenhar. Mas dessa vez foi diferente, não desenhei no papel, desenhei no escuro entre a fumaça que soltava do cigarro com o vapor do meu café. Desenhei mundos infinitos com enredos espetaculares. E tudo nascia e morria no ar. O invisível é tão mais rico e tão mais simples que a rotina de gente grande. Minhas espirais de fumaça eram vivas e tinham sua própria vontade, por mais que eu tentasse molda-las, elas seguiam o rumo que queriam, mas eu ainda mudava o desenho fazendo mais espirais quase invisíveis. Eu ri. As pessoas podiam rir bem mais se pudessem ver o que os olhos não conseguem definir.

E continuei desenhando novas formas com farelo de pão e macarrão, desenhei desertos imensos com a farofa e o mar da feijoada, desenhei rios com as minhas próprias lágrimas e finalmente consegui desenhar um riso na janela ao amanhecer. É bom quando se consegue desenhar a felicidade, mesmo que em doses pequenas.

Não perdi meus desenhos, eles vivem por aí, rodopiando e dançando pelos ventos e sussurros. Agora inventei de desenhar com as palavras, mas essas sim são traiçoeiras, elas gostam de fingir que estão paradas só pra gente pensar que elas são frágeis, até o momento que elas arrancam seu coração e destroem sua alma. Ainda estou aprendendo a desenhar com as palavras, portanto, me perdoem se por vezes elas são mal-educadas. Ainda estou tentando ensina-las a se portar como as minhas espirais de fumaça.

Educadinhas sim, prisioneiras jamais.


[disponível também em literar.org]

segunda-feira, outubro 15, 2007

Vítor

Vítor, do latim significa vencedor.





é...tia babona dá nisso...

quarta-feira, outubro 10, 2007

Rumo ao céu

Saiu de casa sem intenção de sair. Não tomou o habitual café, nem trocou as meias sujas. Saiu sem rumo, sem olhar para trás e sem cigarros. Caía um véu leve de chuva sem gosto e uma brisa de olhar sem ver. Saiu sem destino e sem coração.

Atravessou ruas em passos retos e olhava ao redor como quem pedia ajuda em vão. Sabia que chorava, pois a água que caía nos lábios era salgada e triste. Saiu sem propósito nem alma.
Era um desses dias de desalento moroso, uma culpa latente e dissoluta. Quaisquer palavras eram de desconsolo e perturbação. No entanto, seus pés dançavam, se moviam lentamente em passo de bolero orquestrado sem maestro ou música. Dançava com os pés e morria com a chuva. Queria muito, pedia pouco. Amava demais e era amado de menos. Estômago oco e ácido. Não tomou café nem respirou alívio. Saiu sem dizer adeus nem eu te amo.

Não tinha pressa de chegar a lugar algum, mas tinha ânsia de chegar no momento certo. Corria apenas o tempo. Chovia então uma chuva de medo e remorso. Sorria com os pés e morria com os olhos. Saiu sem documentos, mas levava consigo uma aliança vazia entre os dedos. Perdido, chegou ao seu destino. Parou, respirou profundamente, fechou os olhos e buscou a Deus num último suspiro. Num último passo de tango argentino se jogou do viaduto cinza, como numa cascata de esperança remota. Deixou-se flutuar sem medo ou turbulência. Deixou dois filhos bastardos e o corpo de uma linda mulher numa cama fria com duas meias aquecendo o pescoço nu. Morreu sem trocar as meias.





[disponível em literar.org]