quarta-feira, outubro 10, 2007

Rumo ao céu

Saiu de casa sem intenção de sair. Não tomou o habitual café, nem trocou as meias sujas. Saiu sem rumo, sem olhar para trás e sem cigarros. Caía um véu leve de chuva sem gosto e uma brisa de olhar sem ver. Saiu sem destino e sem coração.

Atravessou ruas em passos retos e olhava ao redor como quem pedia ajuda em vão. Sabia que chorava, pois a água que caía nos lábios era salgada e triste. Saiu sem propósito nem alma.
Era um desses dias de desalento moroso, uma culpa latente e dissoluta. Quaisquer palavras eram de desconsolo e perturbação. No entanto, seus pés dançavam, se moviam lentamente em passo de bolero orquestrado sem maestro ou música. Dançava com os pés e morria com a chuva. Queria muito, pedia pouco. Amava demais e era amado de menos. Estômago oco e ácido. Não tomou café nem respirou alívio. Saiu sem dizer adeus nem eu te amo.

Não tinha pressa de chegar a lugar algum, mas tinha ânsia de chegar no momento certo. Corria apenas o tempo. Chovia então uma chuva de medo e remorso. Sorria com os pés e morria com os olhos. Saiu sem documentos, mas levava consigo uma aliança vazia entre os dedos. Perdido, chegou ao seu destino. Parou, respirou profundamente, fechou os olhos e buscou a Deus num último suspiro. Num último passo de tango argentino se jogou do viaduto cinza, como numa cascata de esperança remota. Deixou-se flutuar sem medo ou turbulência. Deixou dois filhos bastardos e o corpo de uma linda mulher numa cama fria com duas meias aquecendo o pescoço nu. Morreu sem trocar as meias.





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